A cidade é uma só?, de Adirley Queirós

A dificuldade de escrever sobre um filme como A cidade é uma só? é dupla: de um lado, como equilibrar a paixão e o esforço de análise, quando a lembrança de uma sessão absolutamente extraordinária – a tenda de Tiradentes talvez nunca tenha vivido uma mistura tão eufórica de encantamento popular, indignação política e alegria cinematográfica – ainda se faz tão presente? De outro, como estar minimamente à altura da potência estética e política de um filme que parece reinventar o cinema brasileiro contemporâneo, como nenhum de seus companheiros de geração?

Talvez o único caminho possível seja o mais óbvio: tentar chegar à escritura do filme de maneira honesta, com a consciência de que o texto é baseado em uma única sessão e com a esperança de que os debates sobre A cidade é uma só? ainda se prolonguem por um bom tempo. Mais precisamente, trata-se de tentar entender, numa primeira aproximação ao filme, em que consistem tanto a euforia provocada quanto a importância pressentida.

A cidade é uma só? começa com uma canção sobre as esperanças e as desilusões dos habitantes das chamadas cidades-satélite de Brasília, desde sempre relegadas à condição de marginalidade – geográfica, sócio-econômica, cultural – em relação ao Plano Piloto. O sonho de morar e trabalhar no Plano é animado pela voz da cantora Nancy, uma ex-moradora da favela do IAPI que foi transferida para a Ceilândia em plena infância, nos anos 1970, por conta de uma grande operação de higienização social patrocinada pelo governo e chamada de Campanha de Erradicação das Invasões (ironia do destino, a sigla CEI acabou dando nome à nova cidade).

Porta-voz de uma história que se perde na ausência de registros confiáveis, Nancy assume, no filme, o desafio de narrar apesar de tudo: entre depoimentos, entrevistas, canções e comentários críticos de uma lucidez impressionante, somos instigados a compartilhar, por intermédio de sua voz, um relato que é, ao mesmo tempo, biográfico e público, pessoal e historiográfico. Como nas aparições de Elizabeth Teixeira em Cabra marcado para morrer (Eduardo Coutinho, 1984), a personagem de Nancy expressa, de maneira indissociável, o singular e o arquetípico: difícil imaginar uma síntese mais eloqüente do que a trajetória de uma menina incorporada à máquina fascista, convocada a integrar um coral de crianças cuja inglória tarefa era cantar um jingle que instigava os habitantes da cidade a ajudar na remoção das famílias – de suas famílias – para um lugar “melhor”.

Mas o filme que, até então, parecia um documentário sobre a trajetória de Nancy – e, por extensão, sobre um modelo de cidade cujo princípio de organização é a limpeza social –, começa a se tornar ainda mais complexo. De súbito, a narrativa nos apresenta dois outros personagens: Zé Antônio, um corretor de imóveis que compra e vende lotes nas periferias do Distrito Federal; e seu cunhado Dildu, um faxineiro que é candidato a deputado distrital nas eleições de 2010 pelo PCN (Partido da Correria Nacional). A forma documentária passa a ser irrigada por estratégias ficcionais: as abordagens intervencionistas de Nancy passam a conviver com a transparência, o campo/contracampo, os diálogos lapidares entre Dildu e o cunhado Zé Antônio.

Se insistimos em falar de estratégias ficcionais e documentais, não é na tentativa de precisar fronteiras ou estabelecer distinções rígidas entre um regime narrativo e outro. No limite, essa seria uma tarefa impossível: ainda no início do filme, quando Nancy apresenta Dildu e Zé Antônio à equipe do filme, trata-se ainda do documentário ou já estamos na ficção? Quando Zé Antônio, em meio a uma negociação de um lote, dirige-se ao antecampo e pede que a câmera seja escondida no carro, onde estamos? Se resistimos à crença pós-modernista tardia de que não cabe mais a pergunta sobre a indicialidade das imagens no cinema –, é antes por entender que esse jogo entre as formas narrativas é um dado fundamental da experiência do espectador diante do filme de Adirley Queirós. Partilhando de uma tendência extremamente inventiva do cinema contemporâneo – que vai da China de Jia Zhang-ke ao Portugal de Pedro Costa, passando pelo Camboja de Rithy Panh –, A cidade é uma só? faz da contaminação entre as estratégias documentais e ficcionais um poderoso lugar de investigação – e de invenção – cinematográfica.

Enquanto acompanhamos as peripécias da campanha mambembe do magnético Dildu (um ator-personagem simplesmente sem equivalentes no cinema brasileiro de nossos dias, tamanha sua graça, sua força expressiva e sua empatia diante de qualquer espectador), os relatos e reflexões de Nancy sobre a cidade continuam a reverberar, a cada plano. No jingle da campanha – um sensacional gangsta rap com direito a simulação de tiroteio composto pelo produtor e marqueteiro Marquim –, a orquestração precisa e a leveza dos elementos cômicos convive com o peso da história, que se sedimenta tanto na letra quanto nas posturas corporais e na voz de Dildu (até onde se tem notícia, o primeiro candidato a cantar seu próprio tema eleitoral).

E se a perambulação de Dildu pela Ceilândia inevitavelmente nos faz lembrar das andanças de Tião Brasil Grande pela Transamazônica em Iracema (Jorge Bodansky e Orlando Senna, 1974), é também necessário dizer que essa deriva da ficção ganha uma nova dobra em A cidade é uma só?: enquanto Paulo César Pereio era essencialmente um provocador, um corpo estranho introduzido numa realidade que se queria revirar, a potência de Dildu nasce justamente de sua conexão orgânica com aquele espaço e aquela paisagem sonora, humana, afetiva. Se, em Iracema, o cinema-verdade precisava ir ao teatro (para utilizar a expressão de Ismail Xavier), em A cidade é uma só? o que parece ocorrer é uma espécie de acionamento das reservas de ficção potencialmente disponíveis na realidade. Um acionamento que não é, de nenhuma maneira, espontâneo, mas totalmente assentado na força de escritura do filme: quando Dildu cantarola um rap emocionado, ou quando faz uma antológica piada sobre a catedral de Brasília, são as escolhas precisas de mise-en-scène e de montagem que constroem uma ligação umbilical entre o filme e o mundo – que é, sem sombra de dúvida, decisiva para o espectador.

Mas talvez o dado mais decisivo de A cidade é uma só? em relação ao panorama do cinema brasileiro contemporâneo resida em sua dramaturgia. A força das situações cômicas (basta lembrar da conversa entre Dildu e Zé Antônio no carro, na tentativa entrar em Brasília) e a arrebatadora empatia de seus personagens compõem um estilo dramatúrgico que não encontra similares em nossa produção atual de longas-metragens. A beleza da atual experiência popular nas periferias brasileiras talvez tenha – finalmente – encontrado sua tradução cinematográfica mais significativa. Em um texto em que discorria sobre a relevância de O amuleto de Ogum (Nelson Pereira dos Santos, 1974) para o cinema brasileiro de então, Jean-Claude Bernardet não hesitou em declarar: “O Amuleto mudou tudo”. Talvez excessivamente impressionado – mas encontrando severas dificuldades para resistir à tentação –, eu não hesitaria em dizer o mesmo sobre o filme de Adirley.

E há ainda um aspecto fundamental a ser considerado: poucos filmes recentes souberam conciliar uma dose tão alta de coragem e uma heterogeneidade tão grande de recursos expressivos na tarefa de enfrentar de maneira frontal o pernicioso desenvolvimentismo que caminha a passos largos na faina cotidiana de produzir Pinheirinhos e Belos Montes país afora. Já próximo ao fim do filme, Dildu caminha pensativo, exausto após mais uma jornada de peregrinação solitária pela Ceilândia para distribuir santinhos e convencer os moradores da justeza de sua candidatura. De repente, num enorme descampado – desses que só Brasília é capaz de produzir –, surge uma inacreditável carreata da campanha de Dilma Roussef à presidência da república. Dezenas e mais dezenas de automóveis – carregando centenas de bandeiras festivas – adentram o enquadramento, corporificando na tela uma imensa estrutura de poder e dinheiro que já parece se movimentar sozinha. Dildu, ao contrário, precisa se mover com os próprios pés, parar para descansar, recuperar o fôlego antes de seguir adiante (enquanto, cabisbaixo, começa a cantarolar mais um rap). A desesperança inscrita na situação do personagem caminha lado a lado com a resistência instigada pela canção: o filme, cara a cara com a história, embaralha novamente as cartas – as políticas e as estéticas – e faz renascer o cinema ali, onde não esperávamos.